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De onde vem então a força do artigo 421 do CC/2002?

Para nos ajudar a responder a esta questão vamos ao enunciado do próprio artigo:
Artigo 421. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato.

Na minha visão as relações sociais no Brasil começam a tomar uma forma, no que diz respeito ao Direito, com a constituição de 1988, batizada de Constituição Cidadã pelo deputado Ulisses Guimarães.

Por toda a extensão do artigo 5° vemos desfilar a gama dos direitos fundamentais e dos deveres e direitos individuais e coletivos, que por si só já fornece subsídios para uma relação de equidade social baseada em contratos, se efetivamente estas garantias fossem sustentadas nos contratos, mas para isso os contratos deveriam deixar de ter uma visão puramente mercantil e individual, baseada na vontade das partes. O que, aliás, é o que aprendemos nos cursos de Direito Contratual, FGV e EPD, por exemplo.

O contrato é o negócio jurídico supremo da relação de vontade entre as partes. Ele tem autonomia e isonomia e sob este viés não há nada que a Constituição de 1988 possa fazer, pois trata-se do Princípio da Autonomia da Vontade. Que nos dizeres da profa. Maria Helena Diniz:

“A liberdade contratual funda-se na autonomia da vontade, consistindo no poder de estipular livremente, como melhor lhes convier, mediante acordo de vontades, a disciplina de seus interesses, suscitando efeitos tutelados pela ordem jurídica. Desse princípio decorre, como ponderam Hugo Nigro Mazzilli e Wander Garcia, a pacta sunt servanda, pela qual a vontade manifesta no contrato faz lei entre as partes contratantes, a relatividade dos contratos em relação a terceiros e o respeito à vontade das partes, que tem liberdade de contratar se, com, quem, o que e como quiserem.” (Código Civil Anotado, 15ª Edição- 2011, Saraiva,pag. 364)
Ou seja, toda a tutela de direitos fundamentais listadas no artigo 5° da Constituição Federal de 1988 ainda não suplanta o pacta sunt servanda, não traz ameaça ao direito privado.

A Lei 8.078 de 1990 é outro marco no Direito brasileiro. O CDC marca uma era de direitos do consumidor que a sociedade nunca houvera experimentado antes.
O artigo 6° do CDC parece ter mais alcance do que o próprio artigo 5° da Constituição Federal de 1988 que reza sobre os direitos fundamentais. Temos a impressão, a agora assumindo o papel de consumidor, de que o artigo 6° do CDC faz mais sentido no dia a dia do cidadão e o tutela melhor.

Todo o artigo 6° do CDC é uma pérola de direito e fator social, onde não se priva o capital de gerar seus lucros, de atingir seus clientes, mas deixa claro que este deverá fazê-lo de forma clara. Mas o golpe mesmo vem do inciso VIII do artigo 6° do CDC, que estabelece a inversão do ônus da prova em favor do consumidor. Isso é um duro golpe nas empresas que sempre se apoiaram em seu poder econômico para poder conduzir as lides processuais de pessoas que reclamavam contra elas direitos fundamentais, mas não tinham como arcar com o alto ônus de provar que tinham efetivamente aquele direito a ser tutelado. Agora não era mais o consumidor quem deveria provar que estava com a razão, é a empresa quem deve provar que o cliente é quem não está com a razão.

De 1988 a 1990 e finalmente a 2002 com o novo Código Civil. Vimos que na verdade houve uma escalada de questões sociais (Direitos Fundamentais, Garantias de Consumo) que parece, ainda não ofereciam ameaça às relações contratuais, pois a vontades das partes era soberana. Mas ai o artigo 421 do CC/2002 fecha o cerco ainda mais contra as relações contratuais quando introduz o coletivo (social) em seu ordenamento.

Contratar é lícito e justo. É de direito de qualquer cidadão (não vamos aqui abordar a relação de empresas com empresas). Pode ser livre. Só há um porém, deve ser estabelecido nos limites de uma função social. O contrato pode ser celebrado desde que não viole uma relação coletiva, e eis aqui o paradoxo.

Se todos os manuais de contratos definem os contratos como uma relação de vontade entre as partes como pode uma terceira entidade, abstrata em seus fundamentos, servir de parâmetro para os limites de contratar?

Eis ai a força do artigo 421.

Ele não nos nega nada, porém, como uma criança que continuamente precisa estabelecer os limites de suas vontades frente às possibilidades de seus pais, a função social é a baliza das relações contratuais para que se almeje um melhor equilíbrio social. O artigo 421 não nega qualquer relação contratual, mas ele funciona como um sábio mecanismo de ponderação de volta à realidade social de que as relações podem caminhar para uma relação mais justa e equitativa como pensou Rawls em sua Teoria da Justiça.
Nas palavras do prof. Miguel Reale:

“Por outro lado, firme consciência ética da realidade sócio-econômica norteia a revisão das regras gerais sobre a formação dos contratos e a garantia de sua execução equitativa, bem como as regras sobre resolução dos negócios jurídicos em virtude de onerosidade excessiva, às quais vários dispositivos expressamente se reportam, dando a medida do propósito de conferir aos contratos estrutura e finalidades sociais. É um dos tantos exemplos de atendimento da “socialidade” do Direito.” (http://200.251.3.5/download/codigocivil.pdf, pag. 43)

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