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A Boa-Fé Objetiva e o Craines

Eu sempre fui um fã da série Jornada nas Estrelas.
Quem for da minha época sabe o impacto que o imaginário da série causa em nós. Qual garoto não quis ser o capitão Kirk ou o agir logicamente como o oficial de ciências Spock?
Estava semana estava revendo velhos episódios da série Jornada na Estrelas: A Nova Gerção. É aquela com o novo capitão da Enterprise: Jean-Luc Picard.
Neste episódio a Enterprise deveria fazer contato com uma raça que gostaria de fazer parte da Federação dos Planetas. O inusitado nesta aventura é que os Craines, a raça em questão, não possuíam linguagem verbal. Eles possuíam uma desenvolvida forma de comunicação por telepatia. A missão da Enterprise era fazer com que o Craines pudessem aprender um pouco de nossa forma de se comunicar oralmente. Isso era necessário porque os Craines só podiam se comunicar telepaticamente entre si e não com outras raças.
No desenrolar da estória, enquanto os Crianes estão aprendendo sobre a comunicação oral dos humanos, eles vão descobrindo conceitos que para eles são totalmente inusitados. Um destes conceitos é o de privacidade.
Ora uma das características da raça Craine é que eles não podem esconder nada de ninguém, pois os pensamentos das pessoas estão sempre disponíveis, logo o conceito de privacidade para eles não existe.
É aqui que começa a minha divagação.
Numa sociedade com a dos Craines onde não há privacidade, não porque ela foi proibida, mas porque todo e qualquer tipo de informação pessoal esta disponível sem ser solicitada ou mesmo sem a anuência do outro, não há Direito Privado.
Numa relação contratual, por exemplo, é estranho a um Craine ter como princípio geral do contrato a boa-fé!
Para nós seres humanos, a boa-fé como princípio geral dos contratos é necessária, pois desconhecemos efetivamente a intenção do outro, logo a boa-fé nesta relação deve ser presumida.
Em uma sociedade em que efetivamente há meios eficazes de se fazer qual a real intenção do outro na relação contratual, não há a necessidade de se presumir a boa-fé, pois sabe-se que as intenções do outro é efetivamente a de honrar com as obrigações contratuais.
O que quero dizer aqui é que a boa-fé, antes, em meu entendimento, um forte preceito moral que determinava o caráter e a honra do indivíduo, hoje não passa de um mero acessório legal que se deve ter como pressuposto para relações contratuais. Sim, pois, do contrário, não haveriam tantas litigações envolvendo justamente a falta da boa-fé nesta relações contratuais.
Talvez alguns possam dizer que sociologicamente falando isso seria uma evolução das relações sociais humanas que se tornaram mais complexas e cujos interesses são muitos e extremamente divergentes. Isto tá correto, mas creio que seja justamente por conta desta evolução que estas relações complexas na sociedade moderna deveriam deixar de ser privadas (entenda-se aqui individuais) e passar a ser mais coletivas.
Tomar como verdade imutável que um contrato é a representação voluntária da vontade das partes envolvidas nele, é remeter a sociedade para um retrocesso que não corresponde ao que observamos e precisamos atualmente.
A boa-fé como um conceito moral que delineia o caráter do outro numa relação contratual nunca foi tão necessário quanto nos dias de hoje. mas não podemos fazer uso da boa-fé apenas como uma formalização legal, temos que dar forma prática a ela, e a forma de se fazer isso é exercitando a boa-fé.
Na minha ilusão, os Cranies são capitalistas! Não vejo contradição alguma entre se poder saber realmente quais são as intenções e planos do outrem em uma sociedade capitalista. Por exemplo, contabilmente falando, não teríamos as fraudes contábeis e o investidor poderia continuar a investir seus recursos nos negócios e empresas que eu quisesse. Claro que não estamos dizendo que não haveriam gestões administrativas incompetentes que acabassem por prejudicar os negócios, estamos aqui falando de uma sociedade que pode saber o quão honesta é ou não a atividade do outro, mas não de prever o futuro ou de saber se esta medida de honestidade vai ou não gerar lucros.
Nesta mesma linha, a exploração do capital da força de trabalho continuaria, mas certamente ela seria mais justa e a "justeza" que lhe faltasse poderia ser coberta pelo Estado numa forma complementar e não na forma assistencial.
Talvez alguns pensem que não se trata mais de uma forma de organização social capitalista, é qualquer outra coisa menos capitalistas, pois uma premissa numa sociedade desta seria que os lucros teriam um limiar, ou seja, não existiriam lucros exorbitantes (por mais difícil que seja definir isso). Com isso as formas de Direito Privado que conhecemos não se aplicaria.
Pode parecer um absurdo, uma mera fantasia, coisa de ficção científica. Mas não é esta, por exemplo, a intenção, de outro mecanismo jurídico introduzido entre nós brasileiros há cerca 10 anos, a função social do contrato?
Seja como for, a boa-fé ainda é e continuará a ser um princípio geral extremamente importante nas relações contratuais. A menos que consigamos evoluir para um tipo de sociedade onde a boa-fé seja tão natural quanto respirar, e não precise ser presumida.

Comentários

Acredito que essa evolução nunca aconteça , pois apesar de estarmos evoluindo tecnológicamente e em outras áreas também, não consigo ver essa evolução nos relacionamentos humanos. Estamos cada vez mais distantes da verdade e boa fé que devemos pautar esses relacionamentos em regras bem definidas para se proteger do outro.

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